domingo, 13 de setembro de 2020

COMENTÁRIOS SOBRE A REDAÇÃO DO CAPUT DO ART. 37 DA CRFB/88-PEC N. 32.2020 (REFORMA ADMINISTRATIVA)

 

CRFB/88 REDAÇÃO HOJE

ART. 37, CAPUT:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:”

PROPOSTA DA PEC 32/2020:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de quaisquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, imparcialidade, moralidade, publicidade, transparência, inovação, responsabilidade, unidade, coordenação, boa governança pública, eficiência e subsidiariedade e, também, ao seguinte:”

Ao LIMPE (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência) foram acrescidos os princípios da: (i) imparcialidade, (ii) transparência, (iii) inovação, (iv) responsabilidade, (v) unidade, (vi) coordenação, (vii) subsidiariedade e (viii) boa governança pública.

COMENTÁRIOS DO ART. 37, CAPUT COM A DADA PELA PEC 32/2020

(i) Imparcialidade

Na Exposição de Motivos (EM 47/ME) da PEC 32/2020 é dito que “o princípio da imparcialidade difere do princípio da impessoalidade” definindo impessoalidade como “o dever ético de o agente público se conduzir de modo íntegro em relação às pessoas envolvidos no processo”, enquanto a imparcialidade “traduz esse mesmo dever, porém em relação à matéria sob tratamento.”

Em resumo, a impessoalidade se refere às pessoas envolvidas no processo e a imparcialidade tem relação aos seus temas e questões. (PEC 32/2020)

Os princípios da impessoalidade e imparcialidade são tratados de forma separada.

No Direito Administrativo o princípio da impessoalidade já contempla imparcialidade, pois nele está inserido.

Trata-se de exigir de todo agente público, no exercício do seu atividade funcional, se conduza de modo  imparcial.

Diogo de Figueiredo Moreira Neto1 aponta que o princípio da impessoalidade tem tripla conotação:

Na primeira, proíbe a Administração de distinguir interesses onde a lei não o fizer. Na segunda, proíbe a Administração de prosseguir interesses públicos secundários, dela próprios, desvinculados dos interesses públicos primários. Neste caso, enfatiza-se a natureza jurídica ficta da personalização do Estado, que, por isso, jamais deverá atuar em seu exclusivo benefício, como pessoa instrumental, mas sempre no da sociedade. Na terceira acepção, proíbe com ligeira diferença sobre a segunda, que a Administração dê precedência a quaisquer interesses outros, em detrimento dos finalísticos, ou seja, os da sociedade, postos à sua cura. (P. 167)

Em resumo, a prática é inócua! Afinal o agente público deve agir (sempre) pautado na supremacia do interesse público em busca do bem estar da coletividade. 

(ii) Transparência

No mesmo sentido o princípio da publicidade abrange o princípio da transparência, embora esse último não tenha previsão expressa na redação original da CRFB/88 (apenas surge expressamente com a Emenda Constitucional n. 71/2012, Art. 216-A) traz menção expressa ao termo “publicidade” em 4 dispositivos legais, a saber: Art. 5º, LX; Art. 37, caput e seu §1º; Art. 225, IV, todos da CRFB

O princípio da transparência desponta, de forma expressa, na LRF (LC n. 101/2000), Art. 48, como alicerce da responsabilidade fiscal e instrumento de controle social.

Em 2011 é sancionada a Lei n. 12.527, Lei do Acesso à Informação (LAI), conhecida também como Lei da Transparência.

É o incremento da prática cotidiana do controle social consagrando a máxima “o sigilo é exceção à regra” no âmbito da Administração Pública.

Como dito, já está contemplado no princípio dpublicidade.

(iii) Inovação

A EM 47/ME da PEC 32/2020 alega que o princípio da inovação está em consonância com as “diretrizes de organismos internacionais como a OCDE”, bem como tal princípio servirá como “símbolo de uma nova era do Estado brasileiro, deixando para trás a mera conservação burocrática, que, desconectada dos tempos atuais, tem se revelado ineficiente para atender aos anseios do povo brasileiro.”

O conceito de inovação requer algumas reflexões. Há confusão de conceitos utilizados na PEC. Alude como entrave à atividade administrativa dinâmica o fenômeno da “conservação burocrática”. Confunde burocracia com ineficiência, entrave. Vale esclarecer que burocracia “é sistema que racionaliza processos com base na formalização, impessoalidade, hierarquia e eficiência. Disfunção burocrática acontece quando há excesso de formalização levando a funcionamento problemático das tarefas”, alude Gabriela Lotta.

A inovação, alçada a princípio constitucional, não sanará as mazelas do Poder Público. Ilustra-se com o fenômeno da exclusão digital velho conhecido dos governos brasileiros. segundo dados estatísticos 28% dos domicílios brasileiros ainda não possuem acesso à internet2. A falta de investimento de recursos públicos na ciência, tecnologia e infraestrutura é o problema e atinge a máquina estatal em seu todo. Tanto é assim que no mês abril/2020 foi publicada, via Decreto n. 10.332/2020, a Estratégia de Governo Digital do Governo Federal (EGD) para o período 2020-2022 visando suprir os entraves tecnológicos que, irremediavelmente, contamina também a Administração Pública.

(iv) Responsabilidade

Na 47/ME da PEC 32/2020 dispõe que:

O princípio da responsabilidade demanda de todo agente público, de todos os níveis da federação e de todos os poderes e funções da República, responsabilidade no exercício de suas atividades. Essa responsabilidade é ampla e configura uma atuação íntegra não apenas sob o ponto de vista objetivo ou formal, mas também materialmente responsável. Nesse aspecto, o princípio da responsabilidade, conquanto dialogue com outros princípios como a moralidade, a legalidade e a impessoalidade, possui autonomia conceitual ao traduzir um direito fundamental de todos exigirem que os agentes estatais atuem de modo efetivamente responsável.

No Direito Administrativo o princípio da responsabilidade decorre do princípio da legalidade, onde o agente público detém a responsabilidade de agir segundo o comando da lei, além de ter responsabilidade específica “de não deixar de agir segundo o seu comando, existindo, por isso, para cada específica manifestação do poder de agir, um correlato dever de agir.”3 (P. 153)

Sendo o princípio da responsabilidade, de natureza substantiva, cria assim um dever derivado a todos que atribuições “de natureza pública, que é o de prestação de contas, o que pressupõe, por sua vez, o dever de tomar contas.”4 (P. 153/154)

Por outro lado, o princípio da responsividade complementa o princípio da responsabilidade e amplia seus efeitos, “além da legalidade estrita, para inspirar e fundar ações preventivas, corretivas e sancionatórias do Direito Administrativo voltadas à preservação do princípio democrático e da legitimidade, como qualidade que dele decorre.”5 (P. 154)

Regra inócua portanto, uma vez que o princípio da responsabilidade é princípio correlato do princípio da legalidade e sua transgressão torna-se passível de apuração e punição em virtude do arcabouço normativo vigente.

(v) Unidade

Quanto à unidade, alega o Governo na EM 47/ME da PEC 32/2020, estaria vinculado à finalidade da Administração Pública, ou seja, toda a Administração estaria volta a um único fim, e guiada pelos mesmos fundamentos. É o retorno do princípio da finalidade (hoje denominado de imparcialidade na CRFB/88) cujo Poder Público tem fim único, qual seja, a busca do fim público.

Proselitismo puro se se levarmos em conta os princípios constitucionais constantes no Art. 37, caput da CRFB.

(vi) Coordenação

Já previsto em nosso ordenamento jurídico desde a reforma administrativa regulamentada pelo Decreto-lei n. 200/1967 (Art . 8º) busca impedir que a máquina pública atue de forma desordenada, sem integração e coordenação entre seus órgãos.

Todos os níveis da Administração Pública devem trabalhar de forma coordenada promovendo encontros e reuniões com as equipes de trabalho com o objetivo de assegurar a programação e execução integrada dos serviços públicos federais.

Quando não houver possibilidade de realizar de convênio, a União deverá agir em parceria com estados e municípios para coordenar as políticas públicas de todos os entes federativos.

(vii) Subsidiariedade

O princípio da subsidiariedade se originou no direito comunitário europeu (Tratado de Maastricht) e aplica-se no sistema federativo nacional. Consagrado no Decreto-lei n. 200/1967 inaugurou a figura da Administração Pública gerencial, incrementada através de instrumentos de delegação (outorga ou por lei) e descentralização, cujo o mote é reduzir a relevância da atuação estatal na solução dos problemas da coletividade: o Estado deve abster-se de exercer atividade que a iniciativa privada tem condições de exercer por sua conta e risco.

Na EM 47/ME da PEC 32/2020 está atrelado com a valorização do individuo e com o prestígio das instâncias mais próximas de decisão, em respeito ao federalismo.

Causa surpresa o uso da expressão prestígio das instâncias inferiores quando a própria PEC 32/2020 aniquila autonomia desses citados entes.

(viii) Boa governança pública

Outra regra inócua diz respeito ao princípio da boa governança, afinal o princípio da eficiência já o contempla. O Estado desenvolve papel de regulação, prestação de serviços ou de investimentos. 

Para concretizar políticas públicas é essencial traçar metas e finalidades para alcançar os resultados esperados. Tudo isso demanda cautela especial com a governança pública. 

Ante esse cenário, a boa governança depende de ações coordenadas estatais baseadas na premissa ética da eficiência. Essa preocupação com o Estado eficiente não é de hoje: muito antes da EC n. 19/98 alçar ao status constitucional o dever de eficiência do servidor público, o poder público já era dotado do poder-dever de eficiência como bem assinala a reforma administrativa prevista no Decreto-lei n. 200/1967, Art. 26,III e Art. 116, I.


1Curso de Direito Administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial. 16. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

2Disponível em: https://www.cetic.br/pt/tics/domicilios/2019/domicilios/A4/ Acesso em: 12 set. 2020.

3Curso de Direito Administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial. 16. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

4Curso de Direito Administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial. 16. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

5Curso de Direito Administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial. 16. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2014.